A população brasileira está sentindo, na própria pele, as consequências do aquecimento global, que se tornou um elemento complicador em morbidades relacionadas ao calor por Carlos Bocuhy recebida através de Cartacapital.Com Newsletter, newsletter@cartacapital.com.br,
em 17/11/2023 |
A grande
maioria da população brasileira está sentindo, na própria pele, os eventos
climáticos extremos. Nos últimos dias, 43
cidades registraram temperaturas superiores aos 40ºC. Segundo o Instituto
Nacional de Meteorologia, o Inmet, cerca de 1.138 cidades estão em alerta
vermelho, o que equivale a “grande perigo”. O cenário
é agravado com a incidência esporádica e cada vez mais potente do El Niño,
que ressurge mais intensamente, revelando agora potencial global. Com base em fatos evidenciados pelo calor extremo no ano de 2023 e cenários futuros, nota-se que a adaptação climática exigirá o mapeamento de desafios e tendências, assim como a avaliação das políticas públicas existentes e sua efetividade, visando à proteção da sociedade e dos diversos biomas brasileiros. O calor extremo incide de forma diferenciada sobre os diversos territórios e biomas do Brasil, que possuem fragilidades específicas, seja de ordem biofísica, em áreas sob pressão de atividades humanas predatórias, onde também sofre a população, que apresenta vulnerabilidades físicas, econômicas e sociais. É preciso identificar os riscos, medidas necessárias, avaliar políticas públicas existentes e o estado da arte de sua implementação. Norte Na Região
Norte, o sufocamento e a poluição decorrente das queimadas da Amazônia
são incompreensíveis para a realidade tropical de florestas úmidas. A
realidade das florestas boreais resinosas do Hemisfério Norte ou da Austrália
é completamente diferente, onde incêndios se propagam literalmente com o
combustível explosivo proporcionado pela floresta. Na Amazônia, as queimas em regiões de floresta tropical úmida levaram o MPF do Amazonas a afirmar que a origem da fumaça que recobre Manaus está na queima de material ressecado após o desmatamento, além de pastagens. O MPF afirma ainda que, há dois anos, “acompanha as políticas estaduais em relação ao desmatamento e às queimadas no Amazonas” e que “o próprio governo estadual reconhece que a média de execução do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento e Queimadas do Amazonas 2020-2022 foi de apenas 43%”. Portanto, menos da metade das ações planejadas foram devidamente executadas. Prossegue o MPF: “Esse cenário sinaliza que há uma execução deficiente do PPCDQ, ocasionando danos ambientais decorrentes da poluição causada pelo fogo, com efeitos nocivos à saúde da população, em especial o aumento de doenças respiratórias relacionadas à fumaça”. As alterações climáticas imprimiram duríssimo impactos sobre a Região Norte, especialmente sobre o Estado do Amazonas onde, em 5 de novembro, a Defesa Civil noticiava 62 municípios em situação de emergência devido à seca, afetando diretamente um universo de mais de meio milhão de pessoas. O World Air Quality Index (WAQI), que registra poluentes como ozônio e monóxido de carbono na atmosfera, informou que em outubro o índice de ozônio troposférico, danoso ao sistema respiratório, registrou 459 microgramas por metros cúbicos (up/m³), caracterizando estado de emergência segundo os valores indicadores de qualidade do ar da OMS. Como uma
das regiões brasileiras mais ricas em água, a temperatura causticante da
Amazônia testou os limites da resiliência da biodiversidade das águas: com
temperaturas elevadas, peixes, botos cor-de-rosa e outras espécies
sucumbiram. Segundo Adalberto Luis Val, membro da Academia Mundial de
Ciências, “as espécies que usamos para a alimentação humana são extremamente
sensíveis aos aumentos de temperatura crítica máxima da ordem de 35
graus”. De outro lado, o calor extremo turbina a emissão de gases efeito estufa (GEE) não só decorrente das queimadas, mas também em função da crise hídrica, com o acionamento das usinas termelétricas movidas à diesel. “O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) indicou a retomada da disponibilidade das usinas térmicas Termonorte I e II para atendimento do consumo de energia do Acre e Rondônia diante das graves secas que atingem as bacias da região amazônica.” Nordeste Na Região
Nordeste, levantamento do Inpe demonstrou que a região do Semiárido,
especialmente a área da Caatinga, apresentou um aquecimento médio de 4,5ºC
nos últimos 50 anos. Este dado demonstra fortes perspectivas de
desertização ou descatinguezação, conforme afirmou o pesquisador do Inpe
Paulo Nobre, em seminário promovido recentemente pelos tribunais de contas
dos estados nordestinos, que investigam a falta de efetividade das
políticas de combate à desertificação. Para agravar a situação, o Inpe declarou que cenário futuros apontam que a seca da Amazônia tenderá a se repetir com frequência no futuro, com efeitos de deslocamento também para o Nordeste. O flagelo que o clima está impondo ao Brasil necessita de uma forte dose de remediação e prevenção. As diferentes políticas públicas, muitas delas inativas, destinadas a solucionar o problema da seca nordestina, tem que ser imediatamente reestruturadas de forma transversal e sinérgica, afirma em relatório o TCE do Estado da Paraíba. Programas isolados, sem interação, não darão conta do problema da desertização nordestina. Além disso, o relatório produzido em parceria com o TCU informa que 41% dos municípios do semiárido paraibano não possuem órgão ambiental. Em plena
crise climática, não é exagero afirmar que o combate à desertificação do
semiárido do Nordeste encontra-se fragmentado e acéfalo. Centro-Oeste A região
Centro-Oeste é uma das piores áreas de incidência do calor extremo, onde
Cuiabá, capital do Mato Grosso, bateu recorde de 44,2°C, a maior temperatura
entre as capitais brasileiras. O Centro-Oeste apresenta o crescimento de espaços territoriais para o estabelecimento de fazendas de energia solar, em dimensões maiores do que os ecossistemas poderiam suportar. Crítico ao processo, Cézar Victor do Espírito Santo, ex- conselheiro do Conama, afirma: “A meta prevista é atingir uma área de 80 mil hectares com o “plantio” dessas placas de energia fotovoltaicas, sendo metade com o desmatamento de Cerrado e a outra metade em áreas predominantemente de pastagens”. Difícil acreditar que, depois de ser campeã da devastação por exploração agrícola e pecuária do Cerrado, a região seria impactada por elementos que fazem parte da solução da crise climática. Isso demonstra que a justificativa benéfica da atividade-meio não está imune ao licenciamento criterioso que deve determinar quais os limites para suas dimensões e sua escolha de alternativa locacional. Ameaçado por processos de desertificação agora intensificados pelos extremos de calor, o Cerrado do Centro-Oeste é um dos ecossistemas mais agredidos hoje, necessitando de políticas protetivas urgentes. Para frear o problema, é necessário implantar ações de proteção mais rígidas, complementadas com um planejamento territorial focado na formação de corredores ecológicos e na recuperação de pastagens degradadas. Este é o alerta feito por pesquisadores brasileiros em carta publicada na revista científica Nature Sustainability, que aponta: “O bioma Cerrado no Brasil é a savana mais biodiversa do mundo e tem um papel fundamental na estabilização do clima local e global, armazenando carbono e fornecendo água doce ao país. No entanto, o Cerrado tem pouca proteção e está sendo convertido para a agricultura em um ritmo alarmante”. A região do Pantanal retorna ao velho desafio de combate às queimadas. Em 2020 o Pantanal foi acometido pelo maior incêndio da história, quando 30% do bioma foi consumido pelo fogo, gerando prejuízos ambientais, econômicos e sociais sem precedentes. O fogo matou pelo menos 17 milhões de vertebrados. A riqueza e a fragilidade do bioma são evidentes. Protegido como área Ramsar, área úmida de interesse internacional, o Pantanal também possui o reconhecimento da Unesco como Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural da Humanidade. Isso significa que sua importância ecológica deveria ser constantemente respaldada por sistemas de proteção em ações permanentes. A ameaça ao ecossistema, biodiversidade e à população é agora potencializada pelo calor extremo, que se soma ao habitual tempo seco e ventos fortes. Essa combinação explosiva, associada à cultura do fogo praticada para a “limpeza” das pastagens, coloca o bioma em situações fora de controle. Em outubro, um incêndio causado por um raio ainda prossegue, apesar de intensamente combatido por terra e ar, envolvendo Polícia Rodoviária Federal, Ibama e ICMBio. Ao todo, cerca de 300 servidores federais estão envolvidos no combate ao fogo. Assim como a Amazônia, perto do limite de não retorno; a Caatinga e o Cerrado do Centro-Oeste, ameaçados pela desertização; o Pantanal enfrenta as condições de “uma savana moldada por fogo, gado e água”, conforme afirma Fernando Tortato, cientista de conservação da ONG Pathera, apontando ainda que a região está ocupada por pelo menos 3,8 milhões de bovinos. As recomendações para a proteção do Pantanal, agora mais vulnerável diante do calor extremo das mudanças climáticas, incluem melhorias estruturais nos meios de monitoramento e combate a incêndios, urgente ampliação da rede de unidades de conservação e manutenção dos serviços ecossistêmicos, interrompendo a conversão de áreas úmidas para outros tipos de uso da terra. Sudeste Na Região
Sudeste, preocupa a realidade urbana. A macrometrópole de São Paulo agrega
quase 200 municípios. As contínuas manchas urbanas de São Paulo e Rio de
Janeiro estão mergulhadas no calor exponencial refletido internamente por
inúmeras Ilhas de Calor. Chama a atenção na recente onda de calor, a
sensação térmica de 52,7ºC registrada na cidade do Rio de Janeiro. Os planos diretores municipais sofrem contínuo abrandamento de requisitos ambientais em função de pressões imobiliárias especulativas, que agravam o problema da impermeabilização do solo, com impactos de verticalização por edifícios que, como montanhas artificiais, impedem a circulação dos ventos. As duras lições trazidas pelos extremos de calor no Hemisfério Norte são uma fonte de aprendizado. Em algumas áreas da Europa, em ondas de calor intensas e duradouras, idosos não podiam mais sair de casa, sob pena de danos à saúde, muitas vezes letais. O calor se tornou a nova Covid. Na França e na Itália temperaturas escaldantes forçaram governos a tomar medidas extraordinárias determinando ações de assistentes sociais para tentar protegê-los. Escrevi recentemente um artigo analisando diretrizes equivocadas do Plano Diretor paulistano, que é um mau exemplo para todo o Brasil: “É evidente o contraste com o que fazem, por exemplo, Paris e outras metrópoles francesas, que travam intensa luta para sua adequação contra o aquecimento das mudanças climáticas. Paris deu início à identificação de "ilhas morfológicas": quarteirões, praças e parques (considerando o tipo de uso do solo, densidade e a altura dos edifícios) para definir o quanto essas regiões são geradoras de calor. O indicador também leva em conta dados socioeconômicos sobre a população, como idade e renda”. A Mata Atlântica é elemento de vital importância para a manutenção climática. Nos idos do ano de 1560, José de Anchieta descreveu ao seu prior, em Portugal, o clima do Planalto de Piratininga, onde se situa a cidade de São Paulo: “Na primavera e no verão a abundância de chuvas é salutar, porque serve para moderar o ardor do sol”. As soluções para refrescar as cidades são múltiplas e seus efeitos se somam: ampliar cinturões verdes envoltórios das regiões urbanas, possibilitando refrigeração e maior resiliência de serviços ecossistêmicos como produção de água; integrar o conforto do verão nos critérios de construção ou reforma, escolher revestimentos leves ou telhados brancos, que refletem o calor, adaptar-se aos corredores de vento (sem montanhas artificiais representadas pela verticalização), construção de fontes públicas e sombreamento arbóreo. É preciso reintegrar a natureza na cidade: revestimentos impermeáveis, plantar árvores, vegetar pisos, fachadas ou telhados (com espécies resistentes adaptadas ao calor e à água disponível). Como explica Maud Lelièvre, vereadora da capital francesa: “Sofrer os efeitos das ondas de calor não é inevitável, mas uma escolha política.” Sul A Região
Sul, porta de entrada das tempestades extratropicais, sofre com a contínua
troca de massas de ar quente continentais e gélidas da Antártida, em processo
de intempestividade que tem provocado eventos extremos em curtos espaços de
tempo. Pesquisa recente aponta que duplicou a probabilidade de uma tempestade
se tornar muito mais perigosa (categoria 3 ou superior) em menos de 24 horas.
A autora do estudo, Andra Garner, professora assistente de ciências
ambientais da Universidade Rowan, afirma que "essas descobertas devem
servir como um aviso urgente”. Diferentes biomas, diferentes medidas Os desafios são globais e no Brasil vão de norte a sul: diferentes biomas, diferentes medidas. Pode-se contar com referencial científico confiável para o combate ao calor extremo. A publicação “Adaptação às mudanças climáticas ao calor extremo: uma revisão sistemática global das ações implementadas”, da Oxford Open Climate Change, traz um compêndio com avaliação das iniciativas existentes em grande número de países. Mas as características especiais do Brasil, como depositário da maior floresta tropical e da maior biodiversidade planetária, além de ecossistemas diversos e populações vulneráveis, trazem um gigantesco desafio sobre quais medidas seriam mais urgentes e eficazes. Iniciando pelos incêndios, o INPE informa que o Brasil registrou em 2023 161.880 focos de incêndios, de janeiro até dezembro. Dos biomas brasileiros, o que mais queimou até agora foi a Amazônia com 84.971 focos registrados desde janeiro. No Cerrado foram 46.292 focos registrados, sendo o segundo bioma mais afetado pelos incêndios. Na Mata Atlântica o registro foi de 9.704 queimadas. Não resta dúvida de que as políticas de adaptação exigirão integração multisetorial para combater os episódios extremos de calor, incluindo combate aos incêndios e medidas de proteção às populações mais vulneráveis. Mas ainda há questões basilares: será preciso superar profundas contradições existentes no modelo nacional de crescimento, levando o Brasil ao patamar do desenvolvimento. Para enfrentar o calor extremo que se instalou de Norte a Sul, o Brasil, conhecido como o país das águas, passou a emitir mais gases efeito estufa (GEE), ao acionar suas usinas termelétricas. Informou em 15 de novembro a agência Reuters: “A carga de energia elétrica no Brasil alcançou recorde pelo segundo dia consecutivo nesta terça-feira, impulsionada pelas altas temperaturas verificadas em todo o país, que aumentam o uso de equipamentos de refrigeração, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). A demanda instantânea histórica de carga do Sistema Interligado Nacional (SIN) de 101,475 gigawatts (GW) foi alcançada às 14h20 no dia 14 de novembro, superando a marca anterior de 100,955 GW registrada na tarde da véspera, quando o montante ultrapassou pela primeira vez a marca de 100 GW”. A implementação de políticas públicas preventivas e corretivas depende em alto grau da sensibilidade da população. Os brasileiros declararam em várias pesquisas recentes que estão preocupados com as mudanças climáticas, que estas representam um alto risco para a sociedade humana e que decorrem da intensificação da ação humana na face do planeta. Importante
ressaltar que a maioria das nações democráticas possuem, em seu arcabouço
legal, o princípio do direito à informação. No caso do Brasil, além do
direito à informação, também vigora o direito constitucional à participação
social em matéria ambiental. As comprovações sobre o cenário climático adverso levam à urgência em definir, com clareza, estratégias para enfrentar desafios climáticos, livrando as pessoas do imobilismo e da incerteza dolorosa sobre o futuro. É preciso, em todos os sentidos, criar de forma democrática, um plano de ação integrado para fortalecer um estado de resiliência e prover uma adequada resposta aos desafios climáticos. Nada disso acontecerá sem elementos de controle social, com firme participação da sociedade, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Ao que parece, a percepção social e os passos para a mudança comportamental necessária estão, ao menos em parte, sendo definidos e trilhados, mas ainda existe um verdadeiro abismo entre percepção, consciência e ação. A resposta da sociedade brasileira ao desafio climático desafia a efetiva ação do poder público, proporcionando o debate público, meios operacionais, medidas preventivas e corretivas, criando ainda condições basilares para integrar sociedade e ciência, promovendo mecanismos permanentes de informação e controle social para as mudanças necessárias. |
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