O objetivo do presente texto é
apresentar as novas perspectivas do movimento feminista a partir de escritoras
que romperam com as normas de gênero propostas pelo eurocentrismo e as limitações
do feminismo tradicional reinante até a década de 1970. Sabe-se que primeira
manifestação feminista ocorreu na Revolução Francesa, quando a escritora Mary
Wollstonecraft, em resposta à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”
lançou o livro “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”. No início do século
20, o movimento feminista se estruturou nas fábricas da Europa e dos EUA para
reivindicar melhores condições de trabalho. Por certo, a ação do movimento
feminista resultou no reconhecimento das mulheres como sujeitos sociais, na busca
por igualdade no mercado de trabalho, dentre outros; e, políticos, na conquista
do direito ao voto, iniciado pelas sufragistas da
Inglaterra, no séc. XIX.
Entretanto, nesse período, o movimento
feminista trabalhou um sujeito uno – a mulher. Apesar de reconhecer a ampla
diversidade, o que pautou o movimento foram as similaridades que as unia, em
detrimento das especificidades.
Assim, na década de 1970, iniciam
os questionamentos dessa suposta universalidade, a partir da constatação das limitações
que trazia. Essa ideia se fortaleceu nos anos 1990, propondo a desconstrução do
sujeito uno - mulher, para o sujeito plural – mulheres, incluindo os
diversos agrupamentos do movimento feminista.
Desta forma, é nesta nova concepção
que se insere a obra da filósofa norte-americana Judith Butler, que critica
aspectos do movimento feminista, notadamente com relação ao binarismo de gênero
– homem/masculino e/ou mulher/feminino, apresentando um novo e abrangente enfoque para os estudos de gênero e
do feminismo. Para Butler o gênero não é uma mera questão da sexualidade, mas
política ou, no limite, uma questão ontológica, no sentido do “ser em si mesmo”
e da sua fundamentação e amplitude. Assim, ao questionar a identidade de gênero,
objetiva questionar a opressão sobre as individualidades humanas, quando não se
coadunam com a identidade de gênero normatizada.
Em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma
identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que não só
deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio
discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação
política é almejada. (BUTLER, 2003, Pag. 17)
Assim,
o pensamento de Butler se caracteriza pela desconstrução do sujeito uno
e hegemônico da categoria mulher, no sentido de um indivíduo político
biologicamente feminino, ocidental, de classe média, branca e heterossexual, que
geralmente exclui grande parcela do contingente que se propõe representar. Ao
mesmo tempo questiona a identidade de gênero e a lógica de poder masculina, que
não reconhece a diversidade do mundo real das pessoas reais, haja vista a formulação
corrente de uma identidade sexual de gênero normatizada. Para dar sustentação
ás críticas ao feminismo, e para a desconstrução do conceito de gênero, Butler
recorre a Simone de Beauvoir, filósofa e importante feminista francesa da
década de 1960/70:
Por outro lado, Simone de Beauvoir sugere, em “O
segundo sexo” que “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”. Para Beauvoir o
gênero é construído, mas há um gente implicado em sua formulação, um cogito
que de algum modo assume ou se própria desse gênero, podendo em princípio,
assumir algum outro. É o gênero tão variável e volitivo quanto parece sugerir a
explicação de Beauvoir? Pode, nesse caso, a noção de “construção” reduzir-se a
uma forma de escolha? Beauvoir diz claramente que a gente “se torna” mulher,
mas sempre sob uma compulsão cultural a fazê-lo.(BUTLER, 2003, pag. 26-27)
O
conceito de gênero era utilizado como referência do papel social reservado a
sexualidade, sendo o sexo “a verdade da natureza” que fundamentaria o conceito.
Para Butler, sexo e gênero não são naturais, mas construções discursivas. Dessa
forma, a diferença entre sexo e gênero não dá significado ao movimento feminista,
haja vista que [...] será sempre apresentado, por definição, como tendo sido
gênero desde o começo. (BUTLER, 2003, pag. 27)
A
autora apresenta a formulação do respeito aos corpos, cuja plena liberdade não
pode ser dependente do significado atribuído culturalmente, e assim, a
identidade de gênero deve ser livre e flexível. Afirma que as origens e causas
da opressão de gênero se devem a efeitos de dispositivos de poder, formados por
instituições, práticas e discursos, e dentre estes, como instituições
definidoras e produtoras desses efeitos, o falocentrismo e a heterossexualidade
compulsória, que impõe a distinção binária nas identidades de gênero.
Contudo, antes de considerar essas praticas
perturbadoras, parece crucial compreender a “matriz de inteligibilidade”. Ela é
singular? De que se compõe? Que aliança peculiar existe, presumivelmente, entre
um sistema de heterossexualidade compulsória e as categorias discursivas que estabelecem
os conceitos de identidade e sexo? Se a identidade” é um efeito de práticas
discursivas, em que medida a identidade de gênero entendida como uma relação entre sexo,
gênero, prática sexual e desejo – seria o efeito e uma prática reguladora que se
pode identificar como heterossexualidade compulsória? Tal explicação não nos
faria retornar a mais uma estrutura totalizante em que a heterossexualidade
compulsória tomaria meramente o lugar do falocentrismo como causa monolítica da
opressão de gênero?
Assim, ser homem ou ser mulher, hétero ou
homossexual, contextualiza-se num sistema que é justificado pelo discurso e
materializado na vida real. Entretanto, para Butler, isso poderia ser diferente
em um cenário democrático, em que as pessoas reais pudessem se expressar
livremente, também por meio de seus corpos, para além dos discursos que os
controlam. Butler conclui que a heteronormatividade de gênero e suas
instituições falocêntricas e heterossexuais atuam sobre o corpo individual,
atribuindo significados e estabelecendo categorias identitárias primárias. Para
Butler, a incoerência entre sexo, gênero e orientação sexual levam à abjeção, recurso
fundamental para a constituição destes sujeitos, haja vista que não é
suficiente a identificação com a heteronormatividade, mas também a negação dos não
aderentes.
Reconhecendo a diversidade existente no
movimento feminista, têm-se o grupo específico, formado pelas mulheres negras,
que segundo bell hooks, [...] em letras minúsculas como prefere a
autora, para denunciar o seu lugar social como mulher de
ascendência ao mesmo tempo negra e indígena:
Como
grupo, as mulheres negras estão em uma posição incomum nesta sociedade, pois
não só estamos coletivamente na parte inferior da escada do trabalho, mas nossa
condição social geral é inferior à de qualquer outro grupo. Ocupando essa
posição suportamos o fardo da opressão machista, racista e classista. (HOOKS,
2015, pag. 208)
Desta forma, ao caracterizar este grupo em
especial, encontra-se a justificativa para a crítica da afirmação presente em
certos discursos feministas de que "todas as mulheres são oprimidas".
Segundo bell hooks, o movimento feminista norte-americano fundamentado
na obra de Betty Friedan, uma das principais teóricas do feminismo
contemporâneo, compôs-se, [...] de um
seleto grupo de mulheres brancas casadas, com formação universitária, de classe
média e alta – donas de casa entediadas com o lazer, a casa, os filhos, as compras,
que queriam mais da vida. (HOOKS, 2015, pag. 193-194)
Para Hooks, embora reconheça a existência do problema
por que passavam as mulheres brancas, esse feminismo elitizado não se preocupou
com quem daria conta das tarefas domésticas, quando se lançassem no mercado de
trabalho em busca da sua realização profissional. Tampouco cogitou as
necessidades das demais mulheres – não brancas, brancas pobres, não casadas, sem filhos, sem casa etc. Dessa
forma tratou o problema daquele grupo de mulheres brancas, como se fosse a
realidade de todas as mulheres norte-americanas, cuja maioria passava por
graves problemas econômicos e de discriminação de gênero, étnicas e raciais.
Além disso, a autora frisa o racismo existente nos textos das feministas
brancas, que reafirmam a supremacia branca e assim negam [...] a possibilidade
de que as mulheres se conectem politicamente cruzando fronteira étnicas e
raciais. (HOOKS, 2015, Pag.195) Esta recusa em discutir a hierarquização racial
e combatê-la, impediu a discussão do racismo no capitalismo norte-americano,
que para a autora propiciaria a compreensão das relações de classe. E para bell hooks, [...] A luta de classes
está indissoluvelmente ligada a luta para acabar com o racismo.(HOOKS, 2015,
pag. 196) Assim, a autora entende que a descolonização é um processo político
de desconstrução da herança escravista, ainda muito presente na sociedade
norte-americana.
Se bell hooks levanta a necessidade da
descolonização racial, a filósofa e teórica feminista argentina, Maria
Lugones foi a precursora do feminismo descolonial, que seria a forma de superar
a colonialidade de gênero, expressa pela opressão de gênero sob o viés racista
nos marcos do capitalismo. A partir da crítica da ausência do elemento gênero
na perspectiva descolonial proposta por Aníbal Quijano, propõe a colonialidade
de gênero, embasando o feminismo descolonial na interseção entre colonialidade,
raça, classe, gênero e sexualidade. Assim, para Lugones [...] A consequência
semântica da colonialidade do gênero é que mulher colonizada é uma categoria
vazia: nenhuma mulher é colonizada; nenhuma fêmea colonizada é mulher. (LUGONES,
2014, pag. 939)
Diferentemente da colonização, a
colonialidade do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de
gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista
mundial. Pensar sobre a colonialidade do gênero permite-nos pensar em seres
históricos compreendidos como oprimidos apenas de forma unilateral. Como não há
mulheres colonizadas enquanto ser, sugiro que enfoquemos nos seres que resistem
à colonialidade do gênero a partir da “diferença colonial”. Tais seres são,
como sugeri, só parcialmente compreendidos como oprimidos, já que construídos
através da colonialidade do gênero. (LUGONES, 2014, pag. 939)
Desta forma, Lugones estudou a violência sobre as
mulheres não brancas, vítimas da colonialidade do poder e a colonialidade do
gênero, que favorece a compreensão da [...] opressão
de mulheres subalternizadas através de processos combinados de racialização,
colonização, exploração capitalista e heterossexualismo. (LUGONES, 2014, pag.
939)
Como
conclusão, é importante frisar que a luta das feministas brancas, embora
importante, se limitou a opressão de gênero. Entretanto, desde o final do
século XX, surgiram novas visões da posição política e social do movimento
feminista. Em decorrência, várias reivindicações do movimento ocuparam a pauta
dos parlamentos e transformaram-se em leis, que geraram, ações, programas e
políticas públicas. Assim, o movimento feminista que nasceu de um sujeito
político uno, busca agora construir um sujeito com a amplitude necessária
para incluir todos os grupos de mulheres, reconhecendo as suas especificidades.
Há muito ainda a construir e também desconstruir, mas o foco no sistema de gênero moderno/colonial existente, traz para o debate o controle do sexo, seus recursos e produtos, e o
controle do trabalho, simultaneamente racializado e atribuído de gênero. Desta
forma, a questão classista das relações entre capital e trabalho, determinantes
do mundo capitalista, emergem com toda a sua perversidade na articulação entre
trabalho, sexo e a colonialidade do poder. Concordando com este novo enfoque do
movimento feminista é de se perguntar, por exemplo, como se poderia unir, num
mesmo movimento, a proprietária de uma grande rede de lojas varejistas com as
trabalhadoras assalariadas das periferias das grandes cidades, separadas por
colossais diferenças sociais, culturais e econômicas, além de muitas vezes
também étnicas e raciais.
BIBLIOGRAFIA
BUTLER, Judith. ”Sujeitos do
gênero/sexo/desejo”. In: ______. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2003.
HOOKS, Bell. “Mulheres negras: moldando a
teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, Brasília, jan.-abril
2015, p. 193-210.
LUGONES, Maria. “Rumo a um feminismo
descolonial”. Estudos Feministas, Florianópolis, n. 22, v. 3, set-dez 2014, p.
935-952.
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