Por José Levino
Acesso em 25/12/2020.
“Os cristãos, temos que lutar contra a
economia da exclusão e da iniquidade e o mal cristalizado em estruturas
injustas” (Papa Francisco)
Jesus de Nazaré, o Cristo, é
reivindicado pelos pobres, explorados e também pelos exploradores. Falam em seu
nome os que defendem que Deus é Amor e os que proclamam que Deus é vingador, e
em seu nome bombardeiam países dominados (George Bush) ou oram fazendo o sinal
de tiro com os dedos à Bolsonaro. Afinal, Jesus era assim mesmo, abrangente e
contraditório, ou há setores usando seu nome em vão, falseando a doutrina e o
exemplo do jovem nazareno que desafiou os poderosos do seu tempo? Apesar das
limitações dos quatro evangelhos canônicos da Bíblia, aqueles selecionados pela
Igreja no século IV d.C., depois de ser cooptada pelo Império romano, é neles
que buscarei a resposta.
Jesus nasceu na Palestina. Filho de
José, um carpinteiro de Nazaré, aldeia da Galileia, e de Maria, uma bela jovem.
Os hebreus eram, em sua origem, um povo asiático nômade, que exercia a
atividade pastoril, e se dividia em comunidades tribais. Nelas, não havia propriedade
privada, os bens produzidos pertenciam a todos, num regime de comunismo
primitivo.
Em 1750 a.C. fugindo de uma terrível
seca, emigram para o delta do rio Nilo, em território egípcio, onde servem aos
faraós por quatrocentos anos. Deixam o Egito em 1250 a.C., liderados por
Moisés, em busca da Terra Prometida, onde chegam 40 anos depois, dominando os cananeus,
que ali residiam.
Surge a
exploração do homem pelo homem
Em Canaã (Palestina), foi curto o
período de tranquilidade, pois vieram os ataques e a dominação dos impérios da
época: assírios, babilônios, macedônios e, finalmente, os romanos. Quando Jesus
nasceu, a Palestina era província de Roma. O poder político era exercido pelos
fariseus e saduceus, aliados dos romanos, que só interferiam para cobrar o
tributo, nomear os sumo-sacerdotes (entre as quatro famílias mais ricas) e
decidir a pena quando alguém era acusado de crime político.
Os pobres e os setores médios eram
contrários à dominação romana. Alguns deles organizaram um movimento armado,
chamado Zelotes[1],
que queria expulsar os romanos e assumir o poder político, representado pela
tomada do Templo de Jerusalém[2], que era, de fato, a sede
do governo.
Existiam, ainda nas aldeias, os
essênios, movimento de camponeses pobres que nunca abandonaram a vida
comunitária. Eles moravam nas aldeias, não utilizavam a terra para fins
comerciais, tirando dela apenas o necessário para a subsistência. Viviam como
irmãos. Seu princípio maior era o amor ao próximo.
Quem é este
homem?
Cedo, o menino revelou-se inteligente e
interessado em conhecer as doutrinas da época e a vida do povo. Morando numa
aldeia, Nazaré, conheceu os essênios, com quem aprendeu o desapego às riquezas,
partilha dos bens, amor ao próximo, vida coletiva. Com os estoicos (filosofia
helênica trazida pelo domínio de Alexandre, da Macedônia), identificou-se com o
apego à verdade (“A verdade vos libertará”), a dedicação radical à causa (“o
Pai não aceita o morno; ou se é quente ou se é frio) e a serenidade em qualquer
circunstância (enfrentou o martírio com dignidade e serenidade). Frequentou as
sinagogas e bebeu na fonte das profecias, especialmente de Isaias, de quem
gostava de citar: “Trago comigo o espírito de Deus, que me enviou para anunciar
a boa-nova entre os pobres…”. Assim, as três fontes constitutivas do
cristianismo foram: a prática dos essênios, a filosofia dos estoicos e a
religião dos profetas hebreus. A isso, Jesus acrescentou uma espiritualidade
mais profunda que a de todos eles.
Somente aos 30 anos de idade se sentiu
preparado para levar a mensagem ao povo. Inicialmente, a impressão é de que se
tornaria um líder zelote, pois dizia: “Não vim trazer a paz, e sim a guerra;
quem não tiver arma, venda seu manto ou seu arado e compre uma”. Mas logo mudou
de estratégia. Concluiu que de nada adiantaria expulsar os romanos e tomar o
poder político, se as pessoas permanecessem egoístas, ambiciosas, adoradoras do
deus Mamon[3]. Era preciso que os pobres
se convertessem, se tornassem essênios. E, para isso, é preciso “amar ao
próximo como a si mesmo”. Este mandamento é tão importante como aquele de
Moisés, que dizia: “amar a Deus sobre todas as coisas”.
Jesus não buscava confronto com o poder
romano ou local, mas este aconteceria inevitavelmente porque sua pregação
implicava mudança radical nos costumes. Deixava que seus discípulos colhessem
aos sábados, pois a necessidade humana está acima da lei que mandava guardar
este dia. “o homem não existe para o sábado, mas o sábado para o homem”
(Marcos, 2); condenava a exploração de classe: “Benditos vós, os pobres, pois o
Reino de Deus é vosso; malditos os ricos, porque já estão fartos”, e “Os pobres
possuirão a Terra”. (Sermão das Bem-Aventuranças).
Escolheu um grupo de 12 auxiliares
diretos (os apóstolos) para a missão entre os pobres, especialmente pescadores.
“O Espírito do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu para levar boas
notícias aos pobres, para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos,
libertar os que estão sendo oprimidos” (Lucas, 4-18). Multidões (de pobres) o
seguiram e ele mostrou os benefícios da economia de partilha, alimentando cinco
mil pessoas com o pouco que cada um trazia, a partir dos cinco pães e dois
peixes dos apóstolos. Quer dizer, quando se colocam os bens em comum, o pouco
de cada um se multiplica e ninguém passa necessidade. E os ricos não poderiam
aderir à Boa-Nova? Sim, desde que coloquem seus bens em comum. Foi o que ele
disse ao jovem de família rica que pretendia segui-lo.
Três anos depois de pregar pelas
aldeias palestinas, resolve entrar na capital, Jerusalém, centro do poder
econômico e político. Simbolicamente, foi à frente da multidão montado em um
jumento, para dizer que não queria guerra (os zelotes andavam em potentes
cavalos), mas apenas dizer a Palavra para os peregrinos de todos os lugares,
pois era a celebração da Páscoa (passagem da escravidão do Egito para a
liberdade).
Quando chegou ao Templo, encontrou-o
tomado por mercadores de todo tipo. Chamou seus seguidores e – no único momento
de ira registrado pelos evangelhos – expulsou os comerciantes à força,
bradando: “A Casa do meu Pai é casa de oração e não covil de ladrões”. O Poder
sentiu-se ameaçado; achou que por trás do pacifismo de Jesus, então conhecido
como o Cristo (enviado, ungido), gestava-se um movimento de massa contra a
dominação romana e o poder local. O Conselho do Sinédrio mandou prendê-lo. Mas
não queria fazê-lo no meio da multidão. Taticamente, à noite, Jesus e os mais
próximos iam dormir em um dos morros próximos da cidade, sem informar onde
estavam. Um dos apóstolos, entretanto, Judas Iscariotes, o traiu.
Barbaramente torturado em via pública,
Jesus foi levado para um dos morros, o Gólgota, e crucificado, pena máxima
reservada para os grandes salteadores e para os insurretos zelotes. O Cristo
morria, apenas fisicamente, pois como acontece com todos os seres especiais,
sua mensagem permaneceu e se propagou pelo mundo inteiro.
Fonte de
libertação
Depois da morte de Cristo, os apóstolos
organizaram seus adeptos em comunidades, tanto na Palestina quanto nos países
vizinhos e em Roma. Estas comunidades praticavam o comunismo primitivo dos
essênios: “Vendiam tudo o que tinham, colocavam em comum, e não havia
necessitados entre eles” (Atos dos Apóstolos). Eram comunidades autônomas, não
havia centralização.
Setores médios e ricos vão aderindo
cada vez mais à nova religião, cuja moral se apresenta muito superior ao
judaísmo e ao paganismo decadente. Mas os ricos não colocam seus bens em comum.
Para aceitá-los, o princípio é flexibilizado – basta ajudar os necessitados com
uma pequena parte do que se tem (a esmola substitui a partilha).
Os cristãos, antes perseguidos e
massacrados pelos imperadores romanos, no governo de Constantino (312 d.C.)
veem o cristianismo tornar-se religião oficial do Império romano e adotar a
estrutura da Corte (hierarquia, culto, vestes etc.). Nasce a Igreja Católica,
integrante ou aliada das classes dominantes no fim do Império romano, por toda
a Idade Média, promovendo a Inquisição, abençoando a colonização da África e da
América na era Moderna, ditando que negros e índios não têm alma e, por isso,
podem ser escravizados. A Reforma Protestante, ocorrida no século XVI, não teve
caráter popular; ao contrário, teve como objetivo adequar o “cristianismo” aos
interesses da nova classe dominante (burguesia), visto que a Igreja Católica
estava comprometida com a velha ordem feudal.
A Teologia da
Prosperidade é cristã?
Ora, se Jesus endureceu quando viu o
comércio na porta do Templo de Jerusalém, imagine-o diante das suntuosas
igrejas, especialmente as neopentecostais com sua Teologia da Prosperidade,
estimulando o enriquecimento individual e a doação de tudo o que a pessoa tem,
pois o Senhor restituirá em dobro? O que diria o Nazareno ao ler no Jornal
Folha Universal o bispo Edir Macedo escrever que sua relação com Deus é uma
relação de negócio exitosa, pois sua Igreja tem se espalhado pelo mundo
inteiro? Ao observar que autoproclamados servos fiéis colocam suas igrejas a
serviço de candidaturas que adotam a violência contra os pobres, retiram
direitos históricos, abrem caminho para retorno às relações de escravidão? Não se
surpreenderia, pois afirmara aos seus seguidores: “Muitos virão em meu nome,
muitos falsos profetas, e enganarão muitas pessoas” (Mateus, 24), mas,
certamente, ficaria mais colérico que no episódio de Jerusalém.
Onde estão os
verdadeiros cristãos?
A essência da mensagem transformadora
de Jesus Cristo sempre ressurgiu. Na Idade Média, os movimentos heréticos
procuraram mantê-la e refundar as comunidades até serem exterminados pela
Inquisição e pelas Cruzadas. Renasce durante a invasão das Américas com a criação
das comunidades comunistas guaranis no Sul do Brasil, com as Comunidades
Eclesiais de Base após o Concílio Vaticano II. Fomentadas por bispos do povo do
quilate de dom Helder Câmara, dom Fragoso, dom Paulo Evaristo Arns, dom Tomás
Balduíno. E numa homenagem especial, pela passagem recente para a eternidade
(08/08/2020), dom Pedro Casaldáliga.
Dom Pedro, que faleceu aos 92 anos de
idade, era um sacerdote espanhol que deixou sua terra, seu trabalho de
professor e diretor de uma revista para viver e dedicar-se durante 50 anos aos
indígenas, camponeses pobres e peões, assim chamados trabalhadores rurais sem
terra de todo o país que migravam para trabalhar nas grandes fazendas do Mato
Grosso em regime de semiescravidão.
Chegou a São Félix do Araguaia em 1968,
quando o Brasil já vivia sob ditadura militar endurecida com o AI-5 em dezembro
daquele mesmo ano. Mas isso não o atemorizou. Em 1970, enviou para a CNBB e
para autoridades o documento de denúncia “Escravidão e Feudalismo no Norte do
Mato Grosso”. Daí em diante, passou a ser perseguido, caluniado, recebeu
ameaças de morte, mas não recuou nem se escondeu. Nomeado bispo da Prelazia de
São Félix em 1971 pelo papa Paulo VI, continuou morando numa casinha de
madeira, usando um chapéu de palha no lugar da mitra e um cajado indígena em
vez do báculo. Manteve-se a serviço dos oprimidos. Poeta que era, disse no
poema Canção da Foice e do Feixe: “Me chamarão subversivo e lhe direi: eu o
sou. Por meu povo em luta, vivo. Com meu povo em luta, vou”.

[1] Os
Zelotes eram uma seita judaica radical do tempo de Jesus, acreditavam na luta
armada contra os romanos e esperavam um Messias guerreiro. Simão, um dos 12
apóstolos, era conhecido como “o zelote”. O nome vem de “zelo”, que significa devoção
fervorosa.
[2] Os zelotes causaram várias rebeliões violentas contra o
império romano, ao longo de cerca de 100 anos. Todas as rebeliões falharam. Uma
das maiores rebeliões incitadas pelos zelotes culminou na destruição do templo
de Jerusalém, em 70 d.C.
[3] Os antigos Filisteus, povo que viveu
na orla do mediterrâneo cultuavam uma divindade chamada "Mamom", deus
da riqueza, dos bens materiais, do dinheiro. Jesus fez referência a essa
divindade no sermão da montanha, orientando os seus discípulos a não servir a
dois senhores, quando afirmou: "Não podeis servir a Deus e a Mamom”. (São
Mateus. 6:24)
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