Entrevista completa publicada originalmente em:
http://www.viomundo.com.br/entrevistas/bermann-a-energia-hidreletrica-nao-e-limpa-nem-barata.html)
Entrevista: Celio
Bermann, por Manuela Azenha
O professor de pós-graduação
em Energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP desmistifica os
benefícios de o Brasil aproveitar o potencial energético dos rios da região
Amazônica: “Belo Monte representa simbolicamente a possibilidade de transformar
todo o territorio amazônico em um grande conjunto de jazidas de megawatts”.
Célio Bermann foi assessor do
Ministério de Minas e Energia durante os dois primeiros anos do governo Lula e
se afastou em desacordo com o que considera desvirtuamento da política do governo
para o setor. Crítico assíduo do planejamento energético brasileiro, Bermann
não só rejeita a construção de usinas hidrelétricas como a de Belo Monte, mas
propõe uma nova direção de desenvolvimento econômico para o país.
Qual
é a importância econômica da Usina de Belo Monte para o Brasil?
Bermann: A
importância da usina deve ser medida pela sua capacidade de produção de
energia, pelo tempo que a energia produzida estará disponível para o consumo da
sociedade e pelos problemas de ordem social e ambiental que essa usina
representa, inclusive sob o ponto de vista de custos. A importância econômica da Usina de Belo
Monte para o Brasil é negativa, porque ela vai custar muito. O governo fala em
19 bilhões de reais de investimento, mas as empresas envolvidas na obra, na
fabricação dos equipamentos, dizem que a obra não sai por menos de 30
bilhões. Os problemas sociais e ambientais, muitos deles, não têm custo
financeiro. Mas imagine a perda do valor cultural do
rio Xingu, que é sagrado para as populações indígenas. E esse tipo de
raciocínio não está incorporado na decisão de construir um
empreendimento.
A obra é superdimensionada, porque a quantidade de
água para tocar a usina na capacidade proposta, de 11 mil MW (Itaipu produz 14
mil MW, para se ter uma ideia do tamanho da usina), estará disponível apenas
três meses ao ano. Na época de estiagem, por exemplo, em setembro e outubro, a
usina não vai produzir mais do que 1 mil MW. Então porque investir numa obra
com essa dimensão se o retorno econômico/financeiro é baixo? Não é à toa que o
capital privado desistiu de participar da construção.
E por
que então construí-la? Qual é o interesse do governo se não haverá esse
retorno?
Bermann: Eu vejo a obra de
Belo Monte como um projeto de longo prazo. É preciso levar em consideração que
mais da metade do chamado potencial hidrelétrico, para construir hidrelétricas
no Brasil, está localizado na região amazônica, onde há problemas de ordens
social e ambiental. O fato de ter esse potencial para a construção de
hidrelétricas faz com o governo aponte para essa direção irreversível: a de
construir essas usinas, custe o que custar.
Por que isso? O que chama atenção, como sempre, é a
perspectiva do apagão, de se ter falta de energia. Ninguém quer ficar sem energia
elétrica. Então essa forma de propagandear, de alardear que vai ter apagão, faz
com que se aceite usinas com essas características. Não é particularmente o
governo Lula, porque essa obra está sendo pensada há 30 anos.
O problema é que o governo
Lula vai ficar na história como aquele governo que decretou o fim das
populações indígenas e da cultura na região do Xingu. Para responder o por quê
dessa obstinação do governo, é porque se conseguirem validar a construção da
usina de Belo Monte, todas as outras usinas vão se validar também,
principalmente no critério de impactos socio-ambientais.
A Balbina (1) é conhecida como a pior concepção
de hidrelétrica do mundo, porque ela está na planície amazônica, ocupa um
reservatório enorme de mais de 2500 km2, para gerar 250 MW, sendo que a
potência firme dela é de apenas 120 MW. Numa situação dessa, o critério lógico
é abandonar o projeto. Isso não foi feito, na década de oitenta. De lá
pra cá, aumentou o número de planos de hidrelétricas. Belo Monte representa
simbolicamente a possibilidade de transformar todo o território amazônico em um
grande conjunto de jazidas de megawatts. Embora frágil, com populações
tradicionais que precisam ser respeitadas, populações indígenas que precisam
ser consideradas, a perspectiva que Belo Monte aponta é de priorizar a geração
de energia a partir das águas do rio Amazonas. E o resto? Bem, o resto é o
resto.
O
Brasil tem um papel de protagonismo internacional em geração de energia
limpa.
No
caso das hidrelétricas, temos enormes reservas de água que podem ser vantajosas
para o país. Não se deve aproveitar essas vantagens?
Bermann: O maior erro desta
política energética que está sendo implementada é o fato dela se apoiar em
inverdades. Uma delas é de que a energia hidrelétrica é limpa e barata. Ela não
é.
Estudos mostraram que Balbina, Tucuruí e Samuel, as
três maiores hidrelétricas construídas na região amazônica até agora, emitem
gases de efeito estufa mais ou na mesma proporção que usinas a carvão mineral.
Isso pode parecer uma surpresa, mas nos primeiros dez anos de operação de uma
usina da Amazônia, a matéria orgânica, a mata, ela apodrece porque a água a
deixa encoberta permanentemente. E o processo de apodrecimento é muito
forte, acidifica a água e emite metano, que é um gás 21 vezes mais forte que o
gás carbônico, principal gás do efeito estufa.Isso é conhecido pela ciência,
mas não é considerado porque não é de interesse de quem concebe essas usinas. O
que interessa é a grande quantidade de dinheiro que vai ser repassado para as
empresas construtoras de barragens, turbinas e geradores.
O restante, o problema ambiental, as populações que serão expulsas, a cultura
indígena que está sendo desconsiderada, isso não entra na conta.
Ainda
não entendi por que construir essa usina se a energia é suja, cara e provoca
todos esses impactos socioambientais. O Brasil precisa dessa energia ou não?
Bermann: Se o Brasil persistir nessa
direção de desenvolvimento econômico, sim. Mas é isso o que precisa ser
mudado. No Brasil, 30% da energia gerada é gasta por empresas que
consomem muito: fábricas de aço e de alumínio, principalmente. Todas as
empresas presentes na Amazônia, e que usam a energia de Tucuruí, são produtoras
de alumínio, que é exportado. Então é essa lógica que está por trás disso.
Fala-se em crescimento econômico, mas a fabricação industrial é direcionada
para essa produção e para a exportação. Seguindo essa lógica, fatalmente o
Brasil precisará de energia. O problema que precisa ser aberto para a população
brasileira é se a gente quer um crescimento econômico com esse perfil. Ou se
com a mesma energia disponível, não podemos produzir produtos que contenham
mais tecnologia, mais mão de obra, que tenham maior valor agregado e aí sim,
exportá-los. É o que o Japão faz. Na década de 80, todas as indústrias de
alumínio foram fechadas. O Japão passou a importar o alumínio, transformá-lo em
chips, para então vendê-los com um valor 20 vezes maior do que ele pagou pelo
alumínio utilizado. É possível crescer economicamente gastando menos energia,
se diversificarmos a nossa matriz energética para que ela não priorize a hidroeletricidade,
como ela vem sendo priorizada hoje. É falsa a ideia de que ela é mais barata do
que as outras. Colocado na ponta do lápis, esse custo de 30 bilhões da usina de
Belo Monte será financiado pelo BNDES, com o nosso dinheiro, porque as empresas
privadas não quiseram entrar. O banco público vai bancar 80% dos investimentos
e pagar empresas privadas para construir a usina. E a energia elétrica, muito
provavelmente, vai servir para ampliar esse perfil industrial eletro-intensivo.
Vai vir alguma coisa para o consumidor residencial brasileiro, mas poderíamos
conseguir essa energia diversificando as fontes, não tendo essa ideia de
privilegiar grandes blocos de consumo, como esse tipo de indústria faz. A
gente tem, na economia brasileira, demonstrações de que existem setores que
atendem ao requisito de menor consumo de energia, maior tecnologia e maior
incorporação de mão de obra. Então por que não insistir nessa direção?
E quais são esses
setores?
Bermann: Por exemplo, a
fabricação de aviões. Dentro da pauta de exportação brasileira, é o que mais se
sobressai, em termos de receita que advém da venda desses equipamentos. Não
dá para persistir na ideia de um país da dimensão do Brasil, com as
necessidades sociais que tem, como exportador de soja, de café, de açúcar, de
etanol…Exportar aço, celulose, alumínio, é restringir a capacidade que o
conhecimento brasileiro tem, a capacidade de trabalho que o país tem de
consumir energia de uma forma mais inteligente, de uma forma que degrade menos
a força de trabalho de sua gente e o meio ambiente.
Você acha que a
sociedade brasileira está a par do que está acontecendo na Amazônia?
Bermann: É fundamental que a discussão das
usinas hidrelétricas da Amazônia seja disseminada para que as idéias que hoje
justificam essas obras possam passar pelo crivo da sociedade, e não apenas de
especialistas, e aí eu me incluo, que mostram seu ponto de vista cientifico do porquê
condenar o empreendimento dessas obras.
O projeto brasileiro é de
construir 28 usinas na região amazônica. Hoje tem quinze, mas de porte são
Tucuruí, Balbina e Samuel. Desse conjunto que se pretende, mostra que 80% da
capacidade de geração de energia elétrica prevista até 2020 vai vir de 28
usinas hidrelétricas da Amazônia.
E a
questão permanece: a que custos sociais e ambientais? Vale a pena?
A gente não vai conseguir
substituir a necessidade de energia de uma indústria de alumínio com o vento,
ou com energia solar. Mas ela consegue suprir de uma forma diversificada parte
da necessidade de consumo da população, de atividades de indústria de ponta, ou
de comércio e serviços. Não devemos permanecer nessa dependência de grandes
usinas hidrelétricas que custam caro, estão numa distância muito grande do
consumo e representam do ponto de vista socioambiental, pesados óbices para um
país como o Brasil aumentar a renda, a geração de emprego e melhorar a
qualidade de vida da população. A renda no Brasil é absurdamente concentrada e
os esforços recentes nessa direção ainda são pouco significativos frente à
dimensão que hoje se estabelece. Metade da população ganha a mesma renda que 5%
dos brasileiros. Isso mostra porque temos problemas de segurança, baixa
escolaridade, baixa capacitação de mão de obra para se qualificar e se inserir
no mercado de trabalho. É um conjunto de problemas que se verifica e que
poderiam ser resolvidos a partir dessa redefinição do que se quer de um país e
como a energia pode contribuir numa qualidade de vida mais elevada. O problema
é que estamos muito longe dessa direção.
Quais são as
alternativas de geração de energia?
Bermann: Para pequena escala serviria
energia solar, dos ventos, dos resíduos agrícolas.
A política energética atual
tem incorporado essas alternativas de uma forma muito tímida, deveria ser
multiplicada na sua escala. Alegam que essas energias alternativas são caras,
mas se a gente considera a hidroeletricidade com todos os problemas que eu
apontei e com todos seus custos, elas passam a ser viáveis, e passam a
potencialmente poder compor a cesta energética brasileira. Existe uma falsa
questão na hidroeletricidade quando ela é comparada aos combustíveis fósseis e
não tem uma vírgula sobre isso no projeto de Belo Monte. Eu estranhei o espaço
que a usina de Belo Monte tem tido na mídia, nunca vi a imprensa defender tanto
o meio ambiente.
Você
acha que existe uma questão política por trás dessa discussão?
Bermann: Eu já estive muito
próximo do governo Lula. Participei dos primeiros dois anos do governo como
assessor de do Ministério de Minas e Energia. E me afastei por ver a direção
que o governo Lula tomava e a sua forma de assegurar governabilidade, se
aliando ao PMDB, particularmente à figura do senador Sarney. Isso implicou um
redirecionamento político, inclusive nesse comportamento em relação às usinas hidrelétricas.
Todo o staff hoje das empresas públicas elétricas é de homens do Sarney. Então
a forma da oposição combater politicamente a obra de Belo Monte é em função do
que é evidente, dos custos, dos problemas socioambientais, para com isso
alimentar a crítica, mas que é de fundamento político, à obra. Eu não vi ainda
a oposição dizer que não construiria Belo Monte. Não vi o candidato de oposição
se referir à usina de forma incisiva. Então eu vejo que o comportamento da
mídia em relação à Belo Monte, que poderia resultar no envolvimento da
sociedade com relação à usina e criar condições para que o governo revesse a
decisão, foi usado muito na atitude de jogar pedra no telhado de vidro, quando
eu suponho que seria o mesmo telhado se tivéssemos outro governo.
Um país
subdesenvolvido pode ter um desenvolvimento sustentável? Quer dizer, um
país com tantas necessidades sociais quanto o Brasil pode pensar nesses termos
a longo prazo?
Bermann: Deveria.
Mas na construção de hidrelétricas, não se pensa no meio ambiente a longo
prazo. Enquanto houver minérios na Amazônia, vamos aproveitar. Uma usina
hidrelétrica dura até 100 anos. Nos EUA, quando as hidrelétricas já não
funcionam mais, estão tentando recuperar a vida do rio, porque a vida do rio
morre com a usina hidrelétrica. A água que corria agora fica parada, aumenta
sua acidez, diminui o oxigênio, no lago começam a formar macrófitas (algas).
São evidências de que a coisa não está indo no bom caminho se a gente pensa a
longo prazo. A sociedade não está informada, não participa do processo
decisório. Quem participa são essas pessoas que eu mencionei, com suas teias de
interesse já definidas. O deputado que hoje está na frente de uma empresa de
geração de energia elétrica pública, ele garante com esse tipo de articulação,
caixas de campanha para a próxima eleição. Eles embolsam o dinheiro
indiretamente, o que torna impossível de registrar, documentar e ser uma peça
importante num processo judicial de apuração de responsabilidades.
O Delfim Netto
escreveu coluna na revista Carta Capital argumentando em defesa da construção
da usina de Belo Monte. Segundo ele, os não índios na região se
beneficiariam com a criação de emprego e a movimentação da economia. Termina
a coluna citando uma frase que um jornalista publicou no Estadão : “As questões
ambientais ou indígenas são vistas pelos locais como argumentos de quem tem
sobrevivência garantida. Não é o caso de boa parte dos 60 mil habitantes
de Altamira”.
Bermann: A afirmação do Deputado . Delfim
Neto apenas confunde. A sobrevivência das populações tradicionais está e sempre
esteve em permanente ameaça. A população urbana de Altamira tem vários
problemas que não são enfrentados pelo município ou pelo estado. A ausência de políticas públicas acaba conduzindo a
população carente a acreditar que a usina seria a redenção para a região. Como
já havia sido, décadas atrás, a construção da Transamazônica.
(1) A Usina Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, começou a ser
construída em 1973 no rio Uatamã e passou a funcionar em 1988.
Publicado originalmente em
30/07/2012 no Blog do Paulão
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