Por Guilherme Piva e Gabriel Borges
El pibe, Diós, Don Diego…Seus apelidos são muitos. Fato é que
os deuses do futebol chamaram para si, no último dia 25, o homem que se fez
entidade e símbolo de orgulho nacional na Argentina, e virou texto de Galeano.
Pode-se dizer que Maradona levou bem ao pé da letra o bordão argentino de “dejar
la vida en la cancha” (dar a vida em campo).
Diego Armando Maradona foi o quinto de oito filhos, nascido em Villa
Fiorito, uma periferia ao sul de Buenos Aires. A origem humilde sempre foi
motivo de orgulho do jogador, seja honrando o lugar de onde veio, seja
denunciando as condições de vida de seu povo, como certa vez brincou: “Cresci
em um bairro privado de Buenos Aires. Privado de luz, de água, de telefone”. De
ascendência galega, começou a chamar atenção desde criança. Aos dez anos, já
era notícia no tradicional periódico argentino Clarín. Os hermanos ainda
não sabiam, mas aquele garoto deixaria sua marca na história em todas as formas
possíveis, transcendendo a cancha.
A malícia e a rebeldia que seriam marcas de sua carreira começaram a
aparecer cedo. Em sua estreia pelo Argentinos Juniors no campeonato argentino,
saindo do banco de reservas, deu uma caneta no adversário. Com essa caneta,
Diego escrevia a primeira linha de uma das histórias mais marcantes do futebol,
que ele passou rabiscando adversários e defesas.
Aos 17 anos, por pouco El Pibe não jogou a Copa de 1978, que
terminou com a Argentina conquistando seu primeiro título jogando em casa. Mas
dizem que Deus escreve certo por linhas tortas, e oito anos depois, em sua
segunda copa, o baixinho presentearia o mundo com o que é considerado a melhor
atuação individual de um jogador em uma Copa do Mundo na história, em solo
mexicano.
Jogando pelo Boca Juniors, obteve seu primeiro título nacional, antes de
conquistar a Itália, mudando o cenário do futebol local e revolucionando a
história do Napoli, clube pelo qual ganhou dois títulos italianos consecutivos
e um título continental (a Copa UEFA). Até hoje, essas são as maiores glórias
da história do clube do sul da Itália, que pela primeira vez em sua história
pôde enfrentar o monopólio dos grandes times do norte e ser destaque no país.
Mas se era brilhante, Maradona era também rebelde. Conterrâneo e
admirador de Che Guevara, não poderia ter jogado a Copa de 1978, que a ditadura
militar argentina usou politicamente (como fez a brasileira com o título de
1970). A Copa de 1986 seria uma história que parecia ter sido escrita
caprichosamente por Deus para eternizar o camisa 10. Quatro anos antes, a
Inglaterra de Margaret Thatcher havia promovido uma guerra de rapina contra a
Argentina que resultou na ocupação ilegal e terrorista das Ilhas Malvinas. Os
generais fascistas que então governavam, acostumados como eram em vender a
soberania do país para o estrangeiro, não foram capazes de oferecer resistência
e sofreram uma grande derrota que catalisou um sentimento nacional de
contestação e ódio àquela ditadura.
Pois bem, quis o destino que a Argentina enfrentasse a Inglaterra nas
quartas de final da Copa de 1986. E que a bola fosse lançada para Maradona. O
goleiro saiu para tentar socar a bola, mas a mão do argentino foi mais rápida.
Um “soquinho” na bola que encobriu o arqueiro inglês e abriu o placar. Uma
pequena reparação histórica ao povo argentino, imagem eternizada como símbolo
da mística que ele representa.
Para o povo argentino, foi como ter a alma lavada. Há quem diga que o
gol de Maradona faz parte da história da luta argentina contra o imperialismo
britânico. Não foi à toa que o punho que Maradona levantou momentos antes para
abrir o placar, na comemoração seguinte vinha com outro significado: ao menos
em campo, a Argentina resistiu deixando os ingleses submetidos, sem ter como
pará-la. Derrotados. O jogo foi uma síntese do que foi a carreira de Maradona:
genialidade e polêmica. Se o primeiro gol foi ilegal, o segundo foi pura
maestria: ao receber a bola ainda na defesa, encanta o público com um corte
magistral que de uma vez deixa dois ingleses para trás. Carregando a bola,
cortando mais um aqui e outro ali, o time inglês ficou todo para trás. Não
demorou para o goleiro também ficar no chão, aos pés de D10S, concretizando
aquele que é conhecido como o gol do século.
Enérgico, intenso, Maradona expressou em campo o espírito rebelde de
todo latino-americano. Findada a carreira dentro dos gramados, seguiu causando
polêmicas ao denunciar os cartolas do futebol argentino que de muitas formas
oprimiam os próprios jogadores e transformavam a paixão do povo em negócio para
o lucro pessoal. Não ficou barato nem para o presidente estadunidense George W.
Bush, a quem o craque várias vezes se referiu como assassino e genocida,
dizendo que preferia ser amigo de Fidel Castro.
Durante a Copa de 2002, após ser impedido de entrar no Japão para
acompanhar os jogos da seleção porque “não seria um bom exemplo”, segundo as
autoridades japonesas, Maradona mais uma vez demarcou seu posicionamento.
Ironizando o fato de a seleção estadunidense ter visitado o Japão na preparação
para a Copa e sido recebida com toda pompa pela família real, ao ser
questionado por um jornalista sobre a situação constrangedora de ter seu visto
negado pelo governo japonês, o craque disparou:
“Acho engraçado o Japão me considerar um mau exemplo para os jovens
japoneses porque tive problemas com drogas, mas aceitam e recebem com festa os
Estados Unidos que jogaram duas bombas atômicas nas suas cabeças”.
Maradona foi um efusivo apoiador dos governos anti-imperialistas
latino-americanos. Marcou na pele a admiração por Fidel e Che, com tatuagens em
homenagem aos dois revolucionários, e teve vários encontros com o comandante
cubano. Apoiou também ativamente os governos populares de Chávez, Maduro e Evo.
Chegou até mesmo a se declarar um soldado de Chávez. Em seu país, apoiou os
governos progressistas do Kirchnerismo, declarando certa vez que aceitaria ser
vice da ex-presidente Cristina Kirchner. Quando aqui no Brasil o processo
fraudulento de impeachment foi aberto pela direita golpista, Maradona também
não ficou calado e denunciou o processo que ali se iniciava, declarando que seu
coração estava com a então presidenta Dilma Rousseff.
Foi também voz na luta contra o racismo, se solidarizando com o zagueiro
napolitano Kalidou Koulibaly, alvo de gritos racistas em 2018, e dizendo ele
mesmo ter sido vítima de xenofobia quando jogo em solo italiano.
Controverso, com falhas e turbulências em sua vida, mostrou que Deus é
humano. Se posicionando sem medo contra o imperialismo, mostrou que Deus tem
lado: o dos povos explorados do mundo. Sua partida é um choque para todos
aqueles e aquelas que lutam, dentro e fora de campo, pela emancipação humana,
particularmente, pelo nosso povo latino-americano, a quem tão bem
representou. Gracias D10S, hasta siempre!
Disponível em: https://averdade.org.br/2020/11/cronica-el-dios-del-pueblo-hasta-siempre-don-diego/.
Acesso em 27/11/2020.
Diego Maradona nas palavras de Eduardo Galeano
Em sua obra “Fechado por Motivo de Futebol”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano definiu Maradona como “o mais humano dos deuses”, uma “síntese ambulante das fraquezas humanas, ou ao menos masculinas”. Confira abaixo:
Por
Eduardo Galeano
“Nenhum jogador consagrado
tinha denunciado sem papas na língua os amos do negócio do futebol. Foi o
esportista mais famoso e popular de todos os tempos quem rompeu barreiras na
defesa dos jogadores que não eram famosos nem populares.
Esse ídolo generoso e
solidário tinha sido capaz de cometer, em apenas cinco minutos os dois gols
mais contraditórios de toda a história do futebol. Seus devotos o veneravam
pelos dois: não apenas era digno de admiração o gol do artista, bordado pelas
diabruras de suas pernas, como também, e talvez mais, o gol do ladrão, que sua
mão roubou.
Diego Armando Maradona foi
adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também
porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia
reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas: mulherengo,
beberrão, comilão, malandro, mentiroso, fanfarrão, irresponsável.
Mas os deuses não se
aposentam, por mais humanos que sejam.
Ele jamais conseguiu
voltar para a anônima multidão de onde vinha.
A fama, que o havia salvo
da miséria, tornou-o prisioneiro.
Maradona foi condenado a
se achar Maradona e obrigado a ser a estrela de cada festa, o bebê de cada
batismo, o morto de cada velório.
Mais devastadora que a
cocaína foi a sucessoína. As análises, de urina ou de sangue, não detectam essa
droga.”
Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2020/11/texto-de-eduardo-galeano-sobre-maradona-viraliza-nas-redes.html.
Acesso em 28/11/2020.
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