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Sobre o 31 de março



O texto a seguir é uma reedição – requentado, reeditado e atualizado, mas penso ser muito válido como proposta de reflexão sobre os erros do passado.

Em março de 1964 eu tinha de 6 para 7 anos de idade, então o que existe e me impressiona são as lembranças daquela época, que não consigo entender bem se vivi ou penso ter vivido.

Li muito sobre o processo que se instalou desde o suicídio de Getúlio, até a posse de Jango e a proposta das “Reformas de Base” que foram utilizadas como justificativa para a luta contra o fantasma comunista, reflexo do Macarthismo no nosso país tropical.

Assim, faço certa confusão entre o que li e ás vezes penso que vivi e o que vivi e penso que li. 

De concreto, estudava no Grupo Escolar Xavier da Silva, na esquina da Mal. Floriano com a Silva Jardim. Lembro claramente do quartel da PMPR, na Mal. Floriano cercado por barricadas de arame farpado e dos estudantes atirando bolinhas de gude em baixo dos cascos dos cavalos, e a curiosidade que isso provocava em nós crianças, que ficavam sem uma resposta, porque tudo; ou não era comentado ou ficava nas entrelinhas.

Na verdade, a data de 31 de março é marketing, pois efetivamente o golpe aconteceu da noite do 31/03 para 1º de Abril, mas acredito que os marqueteiros da época devem ter aconselhado aos militares para antecipar, porque a data real seria meio complicada para uma “revolução”, ainda mais uma revolução tropicalizada, à brasileira. Pena que houve essa intervenção, por que para o que aconteceu no decorrer do tempo, 1° de Abril seria muito mais adequado ao destino do nosso país durante os 21 anos do regime militar.

Como meu pai era militar, foi um período bom, porque em função das constantes “prontidões”, podíamos (eu e meus irmão) dormir mais tarde e ficar vendo televisão.

Olha que ter televisão naquela época era raro, para os mais novos deve ser difícil de acreditar, mas muitos não tinham TV e a forma de saber das novidades era o bom e velho “Repórter Esso” com os slogans: O Primeiro a Dar as Últimas e Testemunha Ocular da História” e a “Hora do Trabuco” do Vicente Leporace, pelo rádio. Não tenho qualquer lembrança das notícias veiculadas, mas lembro da preocupação de minha mãe, com o regime de prontidão permanente nos quartéis e a possibilidade de mobilização contrária de quartéis não partidários do golpe.

Lembro do meu avô materno, trabalhador da Rede Ferroviária PR/SC, trabalhista convicto, comentando a oportunidade perdida de “melhorar o país” para os brasileiros, primeiro com Getúlio e depois com Jango Goulart.

Lembro da caça ás bruxas que se instalou, os Atos Institucionais sendo divulgados, a imprensa em peso pulando de alegria e noticiando cada prisão com um júbilo incontido.

O resto da história é conhecido, quem viveu no Brasil no período não teve boa vida. Crescemos com um medo não fantasioso de ser preso e desaparecer, era o que acontecia naquela época. Pessoas saiam e não voltavam mais. Conheci e estudei com pessoas cujos pais, tios, irmãos mais velhos tinham “sumido”. Isso deixava todo mundo apavorado, assim, ninguém saía de casa sem documentos (carteira de estudante, carteira de identidade ou qualquer coisa parecida). Ver um carro da polícia era o suficiente para deixar todo mundo gelado.

Não foram 21 anos que passaram em paz e tranquilidade, muito pelo contrário. Imagino como poderíamos estar se, ao invés do golpe dos militares, a direita tivesse aguardado as eleições e tentado chegar ao poder pelo voto, mas isso eles já não tinham naquela época, do mesmo jeito que ainda não têm.

Acredito que essa história de comunismo, de republica de sindicalistas era mais uma pretensiosa justificativa do que a realidade. Para comprovar isso, basta uma análise da documentação liberada no EUA, relatando total apoio ao golpe, o episódio do Cabo Anselmo, do Rio Centro e da Operação Condor, esta levada a cabo no Sul do país e etc.

Inegavelmente, vivenciamos um país diferente, o Brasil já mudou muito, mas ainda apresenta características estruturais que precisam urgentemente ser alteradas, pois somente assim, podemos almejar um futuro melhor para aqueles que vierem depois de nós.

É necessário repensar o país, apresentando um conjunto de reformas que podem efetivamente fazer o país avançar, com mais justiça social e distribuição da riqueza gerada, se isso não ocorrer, independentemente do matiz ideológico do Governo Federal, vamos, de novo, estancar o desenvolvimento nacional. Não adianta colocar no comando um governo de "esquerda" ou de "direita", se não houver mudanças na estrutura econômica, social e financeira do país, pois só mudam os métodos, os objetivos continuam atrelados e interesses escusos e sem qualquer compromisso com o país.

Voltando a Jango Goulart, naquele momento, específico da história de nosso pais, existia uma real vontade política de propor reformas nas estruturas sociais do país: reforma agrária, tributária, bancária, urbana e educacional, aprovar a lei de remessas de lucros, a nacionalização das refinarias e das riquezas do subsolo nacional, batendo de frente com a oligarquia mandante, a dita elite brasileira, que se utilizou de todos os artifícios a sua disposição para impedi-las.

Avaliando-se à luz do conhecimento atual, conclui-se que as reformas propostas, de caráter estritamente capitalista, ainda são fundamentais, além de emergenciais para garantir o desenvolvimento do país com maior distribuição de renda e justiça social.

As Reformas de Base, só não ocorreram em função do Golpe Militar de 31/03/1964, entretanto, continuam tão necessárias como no dia 13/03/1964, data do comício, a figura da Belíndia - coexistência de indicadores sociais da Bélgica e da Índia no Brasil -, continua intocável, e a riqueza gerada por todos os brasileiros continua a favorecer apenas a pequena parcela mais rica da população. 

A reforma agrária, sob o lema de "Terra para quem nela vive e trabalha", continua atualíssima, num momento onde a Agricultura familiar é responsável por quase 70% da produção de alimentos em nosso país.

A reforma do sistema financeiro nacional, que propusesse uma melhor utilização dos recursos existentes, criando condições para uma melhor distribuição do crédito, no rumo dos investimentos produtivos ao invés da mera especulação financeira que ocorre no Brasil, com o beneplácito dos Governos. 

Os 6 maiores bancos nacionais, incluindo aí a CEF que é integralmente do Governo Federal e o BB que tem a União como seu acionista majoritário, lucram bilhões de reais líquidos todos os anos, distribuídos para os seus acionistas, investindo pouco ou quase nada na agricultura familiar, na habitação popular, na saúde ou na educação, dentre outros, que ficam por conta do orçamento público, concorrendo com os desembolsos para pagamento do serviço da dívida pública, priorizada em detrimento de qualquer outro investimento, em função da ditadura de geração e comprometimento do superávit primário.

As Reformas de Base do governo João Goulart continuam atualíssimas, mesmo tendo se passado mais de meio século, e a importância desses 55 anos está na necessidade de uma reflexão profunda de todos aqueles que tem responsabilidades na política brasileira. O grande debate que se impõe ao país é saber que o Brasil não tem mais para onde avançar se não mexer nas suas estruturas econômica, financeira e política.

Não podemos mais conviver com as dicotomias do crescimento econômico a qualquer custo, excluindo a maior parte da população, com uma minoria privilegiada vivendo como se estivesse num país de 1° mundo, que convive, sem o menor pudor, com IDH - Índices de Desenvolvimento Humano comparáveis aos países menos desenvolvidos do mundo. Para melhor distribuir as riquezas brasileiras entre todos, é preciso esquecer a falácia do "primeiro crescer o bolo", por que a elite brasileira não quer e não deixa o bolo crescer e pensar numa mudança radical que atinja a base da pirâmide, e não somente os mais favorecidos.

Para finalizar, o Jango entregou o Governo federal com uma dívida de 1,8 Bilhões de dólares, que chegou ao final do Governo militar cotada em 180 Bilhões de dólares, ou seja cada um dos “90 milhões em ação” junto com a seleção de futebol ficou devendo 2 Mil Dólares, esse custo estamos até hoje e vamos passar ainda um bom tempo pagando.

A história se repete como farsa, aqueles que viveram naquela época, mesmo crianças ou adolescentes, e aqueles que se deram o trabalho de estudar e ler sobre o período, estabelecem perfeita relação com o que está acontecendo hoje em dia, mesmos atores e o mesmo papel, quando muito muda o “cachorro, mas a coleira continua a mesma”. Somente perdeu-se o verniz elitista, mas não se deram ao trabalho de atualizar o texto.

Proponho que assistam os documentários (tem nas locadoras e/ou no youtube) do Silvio Tendler sobre o período – “ANOS JK “e “JANGO”. (Indicações do amigo Eduardo Pereira). Lá estão os jornais “O Globo”, a “Folha de São Paulo e o “Estado de São Paulo (Estadão), fazendo a mesma coisa que fazem agora. A TV Globo não está lá porque foi “criada” depois, com a grana do grupo americano Time-Life. Lá está a grande mídia brasileira, dando espaço para toda a retaguarda do atraso político.


Os políticos da UDN (que hoje seria o equivalente ao DEM, PSDB e o resto deste espectro à direita), que não tinham voto (como ainda não têm), faziam a mesma política do “bate bumbo” que era ecoado nos “jornais” do período.

Tudo era escândalo e motivo para bater no governo, que sabe-se lá por qual motivo, da mesma forma que o governos anteriores não tiveram a firmeza necessária para combater o golpe, acabando engolfados pelos problemas e recolheram-se.

Já o atual Governo comemora a ditadura militar e o presidente Bolsonaro tem entre os seus ídolos o coronel Brilhante Ustra, cujas características de sadismo, crueldade e mentiras que formam a triste figura, o transformaram no primeiro torturador condenado no Brasil.

Tomara que isso não aconteça mais aqui, embora muitos achem que seria bom, “para eles” talvez, mas para o Brasil e para o povo brasileiro, com a mais absoluta certeza: NÃO.

Viva o Brasil! Viva a democracia! Viva o povo brasileiro!

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